O Suicida do Trem
Divaldo Pereira Franco
Eu nunca me esquecerei que um dia havia lido num jornal
acerca de um suicídio terrível, que me impactou: um homem jogou-se sobre a
linha férrea, sob os vagões da locomotiva e foi triturado.
E o jornal, com todo
o estardalhaço, contava a tragédia, dizendo que aquele era um pai de dez
filhos, um operário modesto.
Aquilo me impressionou tanto que resolvi orar por esse
homem.
Tenho uma cadernetinha para anotar nomes de pessoas
necessitadas.
Eu vou orando por elas e, de vez em quando, digo: se este aqui já
evoluiu, vou dar o seu lugar para outro; não posso fazer mais.
Assim, coloquei-lhe o nome na minha caderneta de preces
especiais - as preces que faço pela madrugada.
Da minha janela eu vejo uma
estrela e acompanho o seu ciclo; então, fico orando, olhando para ela,
conversando.
Somos muito amigos, já faz muitos anos. Ela é paciente, sempre
aparece no mesmo lugar e desaparece no outro.
Comecei a orar por esse homem desconhecido.
Fazia a minha
prece, intercedia, dava uma de advogado, e dizia:
Meu Jesus, quem se mata (como
dizia minha mãe) "não está com o juízo no lugar". Vai ver que ele nem
quis se matar; foram as circunstâncias.
Orava e pedia, dedicando-lhe mais de
cinco minutos (e eu tenho uma fila bem grande), mas esse era especial.
Passaram-se quase quinze anos e eu orando por ele
diariamente, onde quer que estivesse.
Um dia, eu tive um problema que me fez sofrer muito.
Nessa
noite cheguei à janela para conversar com a minha estrela e não pude orar.
Não
estava em condições de interceder pelos outros.
Encontrava-me com uma grande
vontade de chorar; mas, sou muito difícil de fazê-lo por fora, aprendi a chorar
por dentro.
Fico aflito, experimento a dor, e as lágrimas não saem. (Eu tenho
uma grande inveja de quem chora aquelas lágrimas enormes, volumosas, que não consigo
verter).
Daí a pouco a emoção foi-me tomando e, quando me dei conta,
chorava.
Nesse ínterim, entrou um Espírito e me perguntou:
- Por que você está chorando?
- Ah! Meu irmão - respondi - hoje estou com muita vontade de
chorar, porque sofro um problema grave e, como não tenho a quem me queixar,
porquanto eu vivo para consolar os outros, não lhes posso contar os meus
sofrimentos. Além do mais, não tenho esse direito; aprendi a não reclamar e não
me estou queixando.
O Espírito retrucou:
- Divaldo, e seu eu lhe pedir para que você não chore, o que
é que você fará?
- Hoje nem me peça. Porque é o único dia que eu consegui
fazê-lo. Deixe-me chorar!
- Não faça isto - pediu. - Se você chorar eu também chorarei
muito.
- Mas por que você vai chorar? - perguntei-lhe.
- Porque eu gosto muito de você. Eu amo muito a você e amo
por amor.
Como é natural, fiquei muito contente com o que ele me
dizia.
- Você me inspira muita ternura - prosseguiu - e o amo por
gratidão.
Há muitos anos eu me joguei embaixo das rodas de um trem.
E não há
como definir a sensação da eterna tragédia.
Eu ouvia o trem apitar, via-o
crescer ao meu encontro e sentia-lhe as rodas me triturando, sem terminar nunca
e sem nunca morrer.
Quando acabava de passar, quando eu ia respirar, escutava o
apito e começava tudo outra vez, eternamente.
Até que um dia escutei alguém
chamar pelo meu nome.
Fê-lo com tanto amor, que aquilo me aliviou por um
segundo, pois o sofrimento logo voltou.
Mais tarde, novamente, ouvi alguém
chamar por mim.
Passei a ter interregnos em que alguém me chamava, eu conseguia
respirar, para agüentar aquele morrer que nunca morria e não sei lhe dizer o
tempo que passou.
Transcorreu muito tempo mesmo, até o momento em que deixei de
ouvir o apito do trem, para escutar a pessoa que me chamava.
Dei-me conta,
então, que a morte não me matara e que alguém pedia a Deus por mim.
Lembrei-me
de Deus, de minha mãe, que já havia morrido.
Comecei a refletir que eu não
tinha o direito de ter feito aquilo, passei a ouvir alguém dizendo:
"Ele
não fez por mal. Ele não quis matar-se."
Até que um dia esta força foi tão
grande que me atraiu; aí eu vi você nesta janela, chamando por mim.
- Eu perguntei - continuou o Espírito - quem é?
Quem está
pedindo a Deus por mim, com tanto carinho, com tanta misericórdia?
Mamãe surgiu
e esclareceu-me:
- É uma alma que ora pelos desgraçados.
- Comovi-me, chorei muito e a partir daí passei a vir aqui,
sempre que você me chamava pelo nome.(Note que eu nunca o vira, face às diferenças vibratórias.)
- Quando adquiri a consciência total - prosseguiu ele - já
se haviam passado mais de catorze anos.
Lembrei-me de minha família e fui à
minha casa.
Encontrei a esposa blasfemando, injuriando-me:
"- Aquele
desgraçado desertou, reduzindo-nos à mais terrível miséria.
A minha filha é
hoje uma perdida, porque não teve comida e nem paz e foi-se vender para tê-los.
Meu filho é um bandido, porque teve um pai egoísta, que se matou para não
enfrentar a responsabilidade.
Deixando-nos, ele nos reduziu a esse estado."
- Senti-lhe o ódio terrível.
Depois, fui atraído à minha
filha, num destes lugares miseráveis, onde ela estava exposta como mercadoria.
Fui visitar meu filho na cadeia.
- Divaldo - falou-me emocionado - aí eu comecei a somar às
"dores físicas" a dor moral, dos danos que o meu suicídio trouxe.
Porque o suicida não responde só pelo gesto, pelo ato da autodestruição, mas,
também, por toda uma onda de efeitos que decorrem do seu ato insensato, sendo
tudo isto lançado a seu débito na lei de responsabilidades.
Além de você, mais
ninguém orava, ninguém tinha dó de mim, só você, um estranho.
Então hoje, que
você está sofrendo, eu lhe venho pedir: em nome de todos nós, os infelizes, não
sofra!
Porque se você entristecer, o que será de nós, os que somos
permanentemente tristes? Se você agora chora, que será de nós, que estamos
aprendendo a sorrir com a sua alegria?
Você não tem o direito de sofrer, pelo
menos por nós, e por amor a nós, não sofra mais.
Aproximou-se, me deu um abraço, encostou a cabeça no meu
ombro e chorou demoradamente.
Doridamente, ele chorou.
Igualmente emocionado, falei-lhe:
- Perdoe-me, mas eu não esperava comovê-lo.
- São lágrimas de felicidade.
Pela primeira vez, eu sou
feliz, porque agora eu me posso reabilitar.
Estou aprendendo a consolar alguém.
E a primeira pessoa a quem eu consolo é você.
SCHUBERT, Suely Caldas. O Semeador de Estrelas.
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